Minha escola, minha vida, meu amor: 76 anos de Beija-flor de Nilópolis
De um pequeno bloco de uma cidade recém emancipada à maior vencedora do Sambódromo
Era dia de Natal. Mas como todo sambista nessa época do ano, os fundadores pensavam em Carnaval. Decidiram então fundar um bloco carnavalesco. A origem do nome é controversa: Uns dizem que foi em homenagem ao Rancho Beija-flor - Rancho era um tipo de agremiação carnavalesca, de muito sucesso no Rio -, outros que um beija-flor pousou no exato momento em que eles discutiam sobre o nome da nova instituição. Ambas as hipóteses envolvem Dona Eulália Oliveira, mãe de Milton de Oliveira (Negão da Cuíca), fundador da escola com a própria mãe D. Eulália , Edson Vieira Rodrigues (Edinho Ferro-Velho), Helles Ferreira da Silva, Hamilton Floriano e José Fernandes da Silva.
Em 1949 veio o primeiro título, ainda como bloco carnavalesco, em Nilópolis. O sucesso dos anos seguintes levou Cabana, maior compositor da história da escola e um dos líderes, a virar oficialmente uma escola de samba, em 1953. A Beija-flor desfilaria na então Capital Federal. No seu primeiro desfile, a Beija-flor trouxe o enredo “O Caçador de Esmeraldas”, sendo campeã do Grupo 2 e já subindo ao principal grupo. A Beija-flor de 1954 até 1974 viveu altos e baixos. Ficou no Grupo 1 até 1960, quando caiu pro Grupo 2. Voltou ao grupo 1 em 1963, caiu, chegou a ir para o grupo 3 em 1965.
Só em 1973, a escola voltou ao grupo 1, atual Grupo Especial, e desde então permanece na elite do Carnaval Carioca. Nesses primeiros anos de novo retorno, a escola trouxe enredos polêmicos. Mas não uma polêmica que a Beija-flor implantaria nos próximos anos: Ela trouxe enredos que exaltavam programas da ditadura militar, como Brasil Ano 2000 e O Grande Decênio. O salto viria em 1976.
Aniz Abraão David, o Anísio, contraventor, bicheiro, empresário, chegou a escola na década de 1970. Durante essa década e a seguinte, vários bicheiros viraram patronos de escola, como um forma de se aproximar da alta sociedade. Pro Carnaval de 1976, Anísio trouxe o atual bicampeão do Carnaval, e promissor carnavalesco Joãosinho Trinta. Além de Laíla, com quem a história e a alma da escola se misturam, ambos vindos do Salgueiro, que até então dominava a década de 1970. Anísio, no entanto, escolheu um jovem para comandar o carro de som: Luiz Antônio Feliciano Marcondes (à época), antes Neguinho da Vala, hoje Neguinho da Beija-flor. Outro nome que se confunde com a escola, fazendo Neguinho incorporar seu apelido ao nome oficial no RG.
A pequena escola de Nilópolis resolveu falar do jogo do bicho, em homenagem a Natal da Portela, primeiro bicheiro a ser ligado a uma escola de samba e homem forte, que até presidentes da República iam se reunir com ele, e que havia morrido em 1975. Apesar de controverso, a Beija-flor veio com um desfile inovador e arrebatador. Pela primeira vez uma escola utilizava movimentos em alegorias. Segundo o Jornal do Brasil, "Joãosinho Trinta conseguiu tirar da escola o ranço ufanista que a acompanhava há alguns anos [...] Todo o aspecto onírico do prosaico e marginalizado jogo do bicho foi revivido com leveza, suavidade e força [...] a Beija-Flor desfilou com a galhardia das escolas grandes e agradou bem mais do que as próprias, sendo a primeira a ouvir da plateia o grito espontâneo e sempre intuitivamente certeiro do já ganhou". Então se deu o primeiro campeonato da Beija-flor, quebrando a hegemonia das quatro grandes: Portela, Mangueira, Império Serrano e Salgueiro.
A Beija-flor emendou um tricampeonato, conquistando o título de 1977 falando sobre o Carnaval em "Vovó e o Rei da Saturnália na Corte Egipciana". O tri veio com um dos melhores sambas da história da escola, que é cantado até hoje nas arquibancadas: “A Criação do Mundo na Tradição Nagô”. O enredo contava a criação do mundo nas lendas e tradições do povo africano Nagô-Iorubá. Enredo que o próprio Salgueiro traria pra avenida no mesmo ano. O samba foi uma junção de dois sambas, um de Neguinho da Beija-flor e outro de Gilson Dr e Mazinho.
A Beija-flor até a construção do sambódromo dominou o Carnaval Carioca. Foi ainda campeã em 1980, junto com Imperatriz e Portela e em 1983, seus primeiros títulos controversos. A partir de 1984 foi criada a Passarela do Samba Darcy Ribeiro, ou como todos conhecem Sambódromo da Sapucaí. Uma estrutura bem melhor que as antigas arquibancadas provisórias, mudando de rua em rua até encontrar seu lugar na Avenida Marquês de Sapucaí.

A Beija-flor viveu uma seca de 15 anos. Mas ela não saiu do protagonismo. Em 1986, Joãosinho iria abordar a história do futebol em “O Mundo é Uma Bola”. Quando a escola entrou na avenida, o céu estava escuro. Até então, alguns críticos da Beija-flor diziam que ela só tinha luxo, e não tinha samba no pé. Principalmente de pessoas da Mangueira, Salgueiro e Império Serrano. Quando o primeiro toque do surdo começou, a primeira gota de chuva atingiu a pele de couro do surdo. Uma tempestade caiu no desfile da Beija-flor. Seus componentes desfilaram com água na canela, literalmente. Pessoas da bateria contam que alguns ritmistas e componentes de ala mergulhavam na água. A Beija-flor aguentou a chuva forte no gogó e com muito samba. Os críticos se calaram. A Beija-flor era favorita, mas perdeu o título pra um desfile morno da Mangueira.
Mas o maior estava por vir. Três anos depois, Joãosinho, criticado pelo excesso de luxo, por ter trazido destaques e composições às alegorias, ao assistir ao desfile que seria campeão da Vila Isabel de 1988, usando materiais simples, teve a ideia de fazer um enredo protesto: Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia. O enredo criticava a injustiça social, convocando moradores de ruas, meretrizes e o povo da rua para o grande Bal-Masqué. Além de ser uma cutucada nos críticos, J30 também criticou o lixo-luxo da burguesia, da política e até da religião. O desfile é considerado por muitos como o maior desfile da história do Carnaval brasileiro. Ao ver a Beija-flor, que era luxuosa, chegando com um mar de mendigos em torno de um Cristo Mendigo coberto por um saco plástico preto, devido a proibição da justiça, com uma faixa: “Mesmo proibido, olhai por nós”, a Sapucaí sabia que não era algo comum. A Beija-flor ganhou 4 estandartes, entre eles o de melhor escola. Mas no desempate, perdeu o título para a escola que viria a ser seu calcanhar de aquiles, a Imperatriz Leopoldinense, com o samba eternizado “Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós!”, sobre os 100 anos de República do Brasil.
Os anos seguintes foram marcados por desfiles conturbados, em especial o de 1992, em que a Beija-flor chegou a montar uma alegoria minutos antes da escola entrar. Foi um desastre e sua pior colocação desde que foi campeã até então. Depois viria Maria Augusta em 1993 e o jovem Milton Cunha, de 1994 a 1997. A Beija-flor fez bons desfiles, sempre voltando pras campeãs e alcançando o terceiro lugar em 1995 com Bidu Sayão e o Canto de Cristal. O Desfile foi luxuoso, tinha um belo samba, mas ficou marcado por duas coisas: A Beija-flor foi a terceira da noite de domingo a desfilar e o samba foi colocado em um andamento muito pra frente, gerando um atrito entre os amigos Laíla e Mestre Odilon, que pediu demissão ao fim do desfile.
Pra tentar dar fim a seca de títulos, a Beija-flor inovou mais uma vez. Montou uma Comissão de Carnaval. Agora não teria só um carnavalesco a frente da escola, mas vários, chefiados por Laíla. Em 1998 a escola traria o Pará como tema, e o mito da criação do mundo para os Caruana. O samba, ao contrário dos anteriores, vinha em um tom mais melancólico e forte. Beija-flor voltava a ser campeã, empatando com a Mangueira.
De 1999 a 2002 a Beija-flor foi vice-campeã em todos os anos. O primeiro em 1999 já foi polêmico. A Beija-flor e a Mocidade fizeram desfiles que arrebataram o público, mas a Mocidade teve uma falha grave na evolução que praticamente a tirou da disputa do título. Tudo parecia encaminhado pra que a Beija-flor fosse campeã. O samba enredo “Araxá, Lugar Alto Onde Primeiro se Avista o Sol” trouxe o primeiro estandarte de samba pra escola. O desfile foi deslumbrante. Mas havia Ramos no caminho. Com um enredo confuso, desfile técnico e arquibancadas frias, a Imperatriz conquistava o primeiro de três títulos consecutivos.


Em 2001, o maior desfile depois de Ratos e Urubus e o samba, que pra mim é o melhor da história da escola: A Saga de Agotime, Maria Mineira Anaê. A Beija-flor fez um desfile na manhã de segunda-feira que fez todos acreditarem que o título já estava decidido. No entanto, na época, havia um sorteio pra eliminar a nota de um dos jurados de cada quesito. E na bolinha, a Beija-flor perdeu 0,5 (não havia descartes), ficando com o vice.
Em 2003 a escola voltou a vencer, novamente com polêmica. O enredo falava sobre a fome, e trouxe vários monstros, o que incomodou alguns sambistas. Além disso, a atual campeã Mangueira fez um excelente desfile sobre Moisés e os 10 mandamentos. Muitos não a colocavam nem na briga pelo título. Mas a escola conquistou o campeonato.
No ano seguinte, a Beija-flor faria do Amazonas. O concurso de sambas de enredo teve quase 100 sambas inscritos. E despontou um samba feito por um compositor vindo da Portela, Cláudio Russo. Laíla não queria o samba dele, preferindo o de Serginho Sumaré, mas não teve jeito. O samba 54 ganhou a quadra e saiu vitorioso. O grande destaque era o refrão do meio “Ê, Manôa, minha canoa vai cruzar o rio-mar. Verde paraíso, é onde Iara me seduz com seu cantar”. Choveu muito durante a noite de desfiles, e todas as escolas ficaram comprometidas de alguma forma. Mesmo assim a Beija-flor garantiu o bicampeonato.
Em 2005 a Beija-flor falaria sobre os Sete Povos das Missões, do Rio Grande do Sul. O samba foi uma junção muito bem feita, resultando em um dos melhores sambas da safra de 2005. A Beija-flor desfilou inteira de dia, traria Jesus Cristo sendo açoitado na Comissão de Frente (assim como a Gaviões em 2019), mas desistiu da ideia, colocando Cristo açoitado em outra parte do desfile. Não houve muitas dúvidas e rivais, e os versos do samba mudariam um pouco depois da apuração: Em nome do Pai, do Filho, a Beija-flor agora é tri!, 27 anos depois.
Em 2007 a Beija-flor trouxe um dos melhores sambas de sua história, e contou a história de uma África rica e das diversas Áfricas que se criaram no Brasil com a vinda dos negros escravizados ao Brasil. “Áfricas: do berço real à corte brasiliana”, de Cláudio Russo, J. Veloso, Carlinhos do Detran e Gilson Dr é um samba incrível. E o desfile ainda foi superior, e poucas vezes se viu uma escola ganhar com tanta disparidade.
Macapá seria enredo em 2008, e a condução do enredo seria a linha do Equador que passa pela cidade. Outro samba excelente, e mais uma vez, uma vitória absoluta, porém num ano de arquibancadas frias.
A Beija-flor, por causa das críticas, buscou se reinventar depois de vencer 5 dos 6 últimos campeonatos. Trouxe um enredo e sambas mais “leves”, e foi bem a princípio. Em 2011, a escola homenageou Roberto Carlos com “A Simplicidade de um Rei”. E já foi apontada como campeã ao anunciar o enredo. E assim se fez. Com um bom samba, mas nada melancólico como os anteriores, algumas alegorias com problemas de acabamaneto, mas com o sambódromo sendo conquistado pelo enredo, a Beija-flor conquistou mais um título.
De 2012 a 2014 a Beija-flor viveu altos e baixos. Decisões erradas acabaram fazendo a escola perder a força, chegando em 2014 a ficar de fora pela primeira vez do desfile das campeãs, com um enredo de gosto duvidoso sobre José Bonifácio, o Boni da Globo.
2015 a Beija-flor voltou as suas raízes e foi falar de um país africano. Mas como não poderia deixar de ser, com polêmicas. Pessoas na época acusavam a escola de apoiar a ditadura de Guiné-Equatorial e tentar limpar a imagem de um país denunciado por desrespeitar os Direitos Humanos. Apesar das críticas, contando novamente com um dos melhores sambas da safra, um desfile luxuoso e um chão que virou referência, a Beija-flor voltava a levantar o troféu.
Em 2017, mais uma tentativa de inovação. Laíla estava incomodado com o formato dos desfiles e o esvaziamento do sambódromo. O enredo seria sobre a obra “Iracema” de José de Alencar, mesmo autor de outra obra que foi enredo da Beija-flor e é considerado uma obra-prima “Peri e Ceci”. Laíla aboliu o formato de alas convencionais, e os setores (como se chama a sequência de alas até a próxima alegoria) seriam coreografados. Era um risco alto. E apesar do melhor samba do ano, a Beija-flor ficou apenas em 6º lugar, e ninguém entendeu o desfile.
No ano seguinte, a Beija-flor voltou ao formato tradicional. Mas 2018 ficou marcado pela ebulição política. E a escola trouxe um enredo politizado: “Monstro é aquele que não sabe amar – Os filhos abandonados da pátria que os pariu”, traçando um paralelo entre a obra Frankstein e os menores abandonados. O samba é forte, marcante, como o enredo pede. Foi o maior sucesso pré-Carnaval. O desfile teve polêmicas, acusações de ser chapa branca ou de não carnavalizar o enredo, e apesar do desfile do Tuiuti (o maior do ano, mas com erros técnicos) a escola conquistou seu 14º e último título do Carnaval.
Laíla saiu depois do título e até hoje a Soberana tenta se reencontrar. E pra isso falará do próprio Laíla ano que vem.
Essa escola que se confunde com sua comunidade, sendo referência nacional em trabalhos sociais e inclusão, vai além da pista de desfiles. O que a escola representa pra Baixada Fluminense é algo único, que faz aquele povo se sentir ouvido, cantando, ou melhor, berrando o samba pra se fazer ser ouvido.
Beija-flor, minha escola, minha vida, meu amor. Deusa da Passarela, razão do meu cantar feliz. Um festival de prata, ouro, luxo, samba, garra e comunidade em plena pista. Quando toca o tambor da sua bateria, o sorriso alegre do sambista se expõe, fazendo o povo nilopolitano mais feliz. Que a Beija-flor volte a se encontrar, e que essa agremiação e o amor de seus componentes e torcedores sejam eternos.
Viva a Deusa da Passarela!